A escolha de Luísa
"Se Eu Fosse Luísa Sonza", série documental da Netflix, é produto para cantora assumir controle narrativo da própria história
Um documentário sobre algum artista serve basicamente para que o público possa conhecer um pouco mais daquela pessoa, suas preferências, sua intimidade, seus traumas… Como construir uma narrativa documental, então, para quem diariamente expõe tudo isso em suas redes sociais, para uma cantora que, após um término traumático de relação, foi a um programa de TV ler uma carta para o ex? Com um alcance muitas vezes incalculável, as redes se tornaram um grande documentário de artistas populares, e Luísa Sonza sabe disso – faz tanto tempo que o nome dela é tópico constante que às vezes até esquecemos que ela tem só 25 anos.
A cantora nascida na pequena Tuparendi, no Rio Grande do Sul, ganhou fama na internet, se casou com uma das personalidades brasileiras mais famosas da rede (Whindersson Nunes) e tornou público tudo o que veio depois, do término com o humorista piauiense a seus sucessores. O problema é que as redes sentem prazer na ofensa, no ataque, na possível destruição de pessoas, e Luísa logo foi vítima de doses cavalares de machismo e misoginia nas mesmas plataformas que a transformaram em uma estrela pop.
Documentário em três partes lançado pela Netflix nesta quarta (13), “Se Eu Fosse Luísa Sonza” tem início com um close meio lateral nos olhos da cantora, que, fingindo timidez e desconforto, olha de lado para a câmera e dá um sorriso sem graça. O take inicial é uma promessa de Sonza com o público, um contrato firmado de que, a partir daquele momento, o espectador terá acesso à sua intimidade, e é quando voltamos à pergunta do primeiro parágrafo: o que resta de intimidade para o documentário de Luísa Sonza?
A resposta talvez pareça complexa, mas a minissérie documental dá à estrela pop a oportunidade de controlar a própria narrativa, de contar apenas o que lhe interessa, de filtrar polêmicas, de contar histórias sem que o outro lado seja ouvido – o documentário, afinal, não é um produto jornalístico, mas uma linguagem narrativa.
É interessante como a série dirigida por Isabel Nascimento Silva, uma cineasta habituada a histórias femininas, logo entrega ao espectador uma informação essencial: a partir do momento em que as câmeras são ligadas, ninguém ali age naturalmente. Em uma das primeiras cenas, toda equipe de Luísa a cumprimenta com um beijo no rosto, mas a cantora questiona “por que estão fazendo isso hoje? Nunca fazem…”.
“Se Eu Fosse Luísa Sonza” é construído em cima dessa base conflitual, sobre o que é verdade ou não na vida de uma estrela pop. O documentário contrasta todo o tempo a “braba” dos palcos e a frágil menina dos bastidores. O primeiro episódio, não à toa intitulado “O Mundo é um Moinho”, mostra brevemente vídeos da infância de Luísa, mas tudo é muito rápido – de relatos das apresentações na escola aos vídeos que fazia na adolescência, que chamaram a atenção de Whindersson, tudo é contado de solavanco.
Essa escolha mostra a opção da série de deixar o passado, as cicatrizes, as marcas para trás. Mais de uma vez, entrevistados (e a própria Luísa) reforçam “tudo pelo que ela passou para chegar até ali” ou “como nenhuma outra pessoa, se não Luísa Sonza, teria superado tudo aquilo”. A ideia é transformá-la em uma heroína, em um poço de resiliência, o que é mais do que normal em uma “biografia”.
A produção é bem feita, com muitas cenas de bastidores de Luísa e sua equipe. A série também tem depoimentos diversos, mas sempre de pessoas do núcleo de Sonza, ou seja, não há ninguém ali disposto a contradizê-la ou a contrariá-la. A maior “surpresa”, talvez, seja o depoimento de peito aberto de Whindersson, mas também não é nada que já não tenha sido dito em outras ocasiões. Quando um conflito maior parece se formar, o texto logo busca outro caminho.
“Se Eu Fosse Luísa Sonza”, vale ressaltar, é eficiente nessa construção de sua biografada principalmente ao retratar o efeito de todo o ódio gratuitamente destilado contra ela nas redes ao fim do relacionamento com Whindersson. É curioso que a série traz um efeito de causalidade para escolhas da cantora, mas nunca aborda o tema saúde mental – pelo contrário, até “romantiza” uma fala sobre a quantidade de calmantes tomados por ela. Qual o peso dessa violência virtual na vida de uma jovem estrela? Sim, a história de uma mulher forte e capaz de superar tudo isso está ali, mas a que custo?
A Luísa que vemos em tela é uma mulher forte, mas fragilizada. Uma jovem que cresceu diante de holofotes, ao lado de outra pessoa afeita a eles, e sem saber muito bem o limite entre privacidade e vida virtual.
O documentário mostra uma Luísa Sonza descabelada, falando palavrões e sendo muito “normal”, ou o quão “normal” é possível ser a vida de uma estrela pop hiper exposta. Tudo é muito bem feito, mas pouca coisa parece natural; ao falar sobre o vazamento de uma foto íntima sua, por exemplo, a cantora aparece à mesa semi-nua, em uma conversa casual com a equipe, como se, mais uma vez, tomasse a rédea da situação.
“Se Eu Fosse Luisa Sonza” é Luísa acertadamente assumindo o controle da própria narrativa, culpando “a mídia” por muita coisa, como espetaculizarem seu casamento e sua separação, e se tornando uma vítima injusta do que criou. Na jornada da heroína, a série da Netflix a coloca em um pedestal, em um lugar “único” dentro da música pop, da estrela que briga “contra os padrões da indústria” mesmo sendo, de certa forma, o epítome deste padrão.
O formato também permite que a cantora conte sua versão de fatos como a acusação por injúria racial. Ao simplificar a história, mas não negá-la, ela a utiliza na construção da personagem, da menina do interior que errou, aos 18 anos, fruto de um sistema racista, mas que se mostra arrependida e disposta não só a se transformar, mas também às pessoas a seu redor.
Ao fim, é levemente frustrante a maneira como o documentário aborda o relacionamento de Luísa com Chico “Moeda” Veiga, último fato que a levou novamente aos holofotes, preferindo dar destaque ao disco que lançou no mesmo período. As filmagens da série se encerraram antes do fim do relacionamento (e da subsequente leitura da carta ao lado de Ana Maria Braga), o que deve, provavelmente frustrar muitos que esperavam ver ali alguma novidade sobre o assunto, mas não essa a escolha de Luísa.
Para ter acesso a todos os textos já publicados, basta ir a rafaelbraz.substack.com. Compartilhe se achar que vale a pena. Isso já ajuda pra caramba. Boa leitura!