Europa, drogas, frio, um acidente e um hospital
Em "Cervical Sexta", o músico/empresário Fábio Mozine relembra o acidente que sofreu na Alemanha, em 2007, e o risco de ficar tetraplégico
“Fui despertado por um barulho absurdo de freada seguido de gritos. Todos gritaram (...) Tem alguma coisa cômica em um monte de homem, uns barbudos, outros cabeludos, a maioria tatuados, gritando ao mesmo tempo dentro de uma van”, lembra Fábio Mozine.
Em 24 de outubro de 2007, durante uma turnê das bandas Merda e Leptospirose pela Europa, a van que elas estavam sofreu um grave acidente perto de Dresden, na Alemanha, e a poucos metros da fronteira do país com a República Tcheca. Apesar do susto, todos sobreviveram, mas há mais história a ser contada a partir daí.
Após sair andando da van e até ter ajudado (ou tentado ajudar) a tirar pessoas das ferragens, Fábio Mozine sentia dores leves no pescoço e acabou internado em um hospital com uma grave lesão na vértebra e um sério risco de ficar tetraplégico. “Chegando no hospital fui recebido por uma junta de médicos e enfermeiros que já me esperavam. Todos meio assustados, curiosos, tudo era muito estranho”, descreve Mozine em “Cervical Sexta”, livro lançado pelo músico/empresário/influenciador (e provavelmente ele vai odiar que eu o tenha descrito assim) para contar o ocorrido à sua maneira.
“Cervical Sexta” acompanha Mozine na Europa, dos dias que antecedem o acidente, uma breve ideia de uma turnê de banda punk/hardcore por lá, com drogas, lugares sujos e frios, até o retorno à sua tão amada Vila Velha, passando, claro, pelas incertezas e frases em alemão não compreendidas durante a internação.
Se você tem esse material em mãos, provavelmente conhece ou sabe quem é Mozine. Baixista do lendário Mukeka Di Rato, guitarrista e vocalista do Merda, fundador de Os Pedrero, Fábio Magnagno Mozine saiu da bolha do underground com a Läjä Records, selo criado para lançar bandas punk que acabou se tornando muito mais que isso. Em seu Instagram, Mozine, apenas sendo Mozine (ou a imagem que esperam que ele seja), criou gírias, vendeu roupas de estampas questionáveis, e, por mais exagerado que possa parecer, introduziu a “tosqueira” ao estilo Vila Velha para o resto do Brasil.
Em várias viagens como jornalista pelo Brasil, fui questionado sobre ser do Espírito Santo, por pessoas estranhas à cena hardcore, com a pergunta: “você conhece o Mozine?”. De fato, o conheço, mas o autor de “Cervical Sexta” em diversos momentos parece ser outra pessoa. O Mozine dos palcos e dos vídeos engraçados dá lugar a um sujeito mais frágil diante da dúvida sobre tudo o que o cerca em um país estranho, de língua difícil, e do risco de ficar tetraplégico.
Entrecortado por ótimas ilustrações de Carlos Dias, o livro é contado em capítulos curtos, como trechos de sonhos, lembranças já nem mais tão sólidas, mas tem algumas constantes, entre elas, Nego Léo. Léo é uma das figuras mais atenciosas e carinhosas que o underground capixaba já conheceu, e não à toa é quem ficou ao lado de Mozine durante todo o período de internação pré e pós-cirurgia. Ele aparece quase como um coadjuvante, um alívio cômico no livro, mas uma presença sempre afetuosa.
“Cervical Sexta” é sério, com momentos angustiantes que detalham, por exemplo, a implantação do que Mozine chama de “objeto de tortura medieval” para evitar que ele movimentasse o pescoço. É fácil também se emocionar com “Cervical Sexta”, principalmente quando o autor detalha seus poucos contatos com os pais, Jandyr e Izaura – é importante lembrar que o ocorrido se deu em 2007, antes da popularização dos smartphones. Assim, não havia chamada de vídeo ou ligações via wi-fi, tudo era mais difícil, raro e, principalmente, caro.
Ainda assim, há humor peculiar, talvez por já sabermos que ele sobreviveu a tudo aquilo. Há graça no desespero de não saber o que os médicos estão falando, em ter um caso tão delicado que o torna um objeto de visitas de estudantes de medicina, ou na maneira como o autor lida com situações médicas gravíssimas.
“Cervical Sexta” é um livro de leitura rápida e agradável, uma obra da qual a gente não sabe exatamente o que esperar a cada capítulo; pode ser um emocionante contato de Mozine com os pais, uma informação extra sobre sua situação, uma história de Nego Léo ou um relato sobre consumo de drogas (e o constrangimento de relatá-lo aos médicos). “Cervical Sexta” é um texto de trauma, mas também de esperança. O livro é, acima de tudo, o Mozine de hoje se reconectando com o que aconteceu e com o Mozine de 16 anos atrás, sempre avaliando como aquela experiência traumática mudou sua vida.