Encantadora e assustadora, ficção científica da HBO Max é uma obra-prima
Série "Planeta dos Abutres" traz grupo de humanos contemplando a própria insignificância em um planeta que encanta e ameaça
A produção de filmes e séries em animação vive um grande momento. No cinema, além das obviedades de Pixar e outras produtoras, obras como “Homem-Aranha: Através do Aranhaverso” ou “As Tartarugas Ninja: Caos Mutante” mostram que a animação talvez seja uma casa até melhor para as histórias de heróis, com infinitas possibilidades criativas. Nas séries, há vários exemplos, mas vou me ater a dois sobre os quais escrevi por aqui recentemente.
Apenas na última semana, foram lançadas a segunda temporada de “Invencível”, a melhor série de herói já feita, e a primeira de “Samurai de Olho Azul”, duas obras que dificilmente seriam tão interessantes no formato live-action. No final de outubro, sem nenhum alarde, a HBO Max lançou “Planeta dos Abutres”, série que passou totalmente despercebida por mim até ler um elogio a ela vindo de Rodrigo Salem (da newsletter Desafiador do Desconhecido. Assine!), jornalista cuja opinião sempre merece atenção. Ao dar uma chance à série e consumir todos os episódios disponíveis em sequência (nove, de doze, já estão disponíveis), a pergunta que fica é: por que não está todo mundo falando sobre a série?
“Planeta dos Abutres” é uma obra-prima, uma série de ficção científica rara, que mistura a criação de um universo, um planeta, sua fauna, sua flora e suas regras a uma sensação de medo constante. Inspirada na HQ francesa “The Worlds of Aldebaran”, ilustrada por pelo brasileiro Leo (Luiz Eduardo Oliveira), e “ampliada” por Joseph Bennett e Charles Huettner a partir do curta “Scavengers”, feito por eles em 2016, a série acompanha a equipe de um cargueiro espacial em um planeta estranho. A nave deles permanece na órbita do planeta, mas, sem recursos, eles precisaram tentar tornar o planeta habitável até um possível resgate.
Os sobreviventes foram separados na descida, com Azi (Wunmi Mosaku) e o robô Levi (Alia Shawkat) encontraram meios para sobreviver mesmo diante de constantes ameaças, enquanto Ursula (Sunita Mani) e Sam (Bob Stephenson), sem recursos, precisaram aprender a usar o planeta a seu favor. Ainda, há Kamen (Ted Travelstead), sujeito que acaba sozinho e cria uma estranha conexão com uma aparentemente inofensiva criatura local. A série desenvolve os três arcos separados, preparando para possíveis encontros quando a nave sai misteriosamente de órbita e pousa em um canto remoto do planeta.
“Planeta dos Abutres” é basicamente a série que “Raised by Wolves” tentou ser antes de sair do rumo. O texto cria um ambiente visualmente belíssimo, mas quase sempre hosti a ponto de fazer o espectador temer por alguns daqueles personagens. O trabalho de construção de um universo para a série impressiona, com um design de produção impressionante que torna aquilo tudo vivo, interconectado de alguma forma que nem o espectador nem os personagens são capazes de entender. É como se aquele mundo (e a série) lembrasse os protagonistas (e o espectador) de que eles são insignificantes diante de tudo aquilo.
Paralelamente, a série mostra alguns flashbacks que ajudam no desenvolvimento dos personagens e nas relações pré-existentes entre eles. Usado com cautela, e muito mais para construir do que para explicar, o recurso funciona. “Planeta dos Abutres” é uma narrativa muito visual, com uma animação que é genial justamente devido à sua simplicidade, com cada descoberta, nossa ou dos personagens, despertando uma sensação de encanto.
O contraste entre a beleza e o perigo é constante e necessário para o clima de terror da série. Sim, “Planeta dos Abutres” á uma ficção científica de terror tanto físico quanto psicológico, com episódios curtos, mas em movimento até mesmo nos momentos mais contemplativos. O texto usa a insignificância humana nesse novo mundo para discutir como a humanidade interage com o ambiente na ânsia capitalista por ter sempre mais – é uma incursão expansionista que os leva até lá, que os coloca naquele lugar antes de perceberem serem apenas números para os poderosos.
Tecnicamente impecável, com uma trilha sonora estranha e um visual meio surreal embalando uma história assustadoramente encantadora, “Planeta dos Abutres” é imperdível para fãs de ficção científica, mas também funciona para um público mais geral disposto a se questionar sobre a humanidade e as escolhas de vida.