Ação, terror e política em novo dorama da Netflix
"A Criatura de Gyeongseong" mostra os últimos dias de dominação japonesa na Coreia do Sul
Os traumas japoneses da Segunda Guerra Mundial são amplamente explorados pela cultura pop dos últimos 70 anos, da criação do Godzilla, em 1954, um reflexo das bombas nucleares de Hiroshima e Nagasaki (e dos subsequentes testes nucleares na região, ao anime “Hadashi no Gen (Gen Pés Descalços)”, que voltou a viralizar em oposição à falta de sensibilidade de “Oppenheimer” sobre o tema. Pouco se fala, porém, dos traumas causados pelo Japão antes disso, quando o império esbanjava uma ânsia colonizadora pela Ásia.
Em termos históricos, faz pouco tempo que a hoje potência Coreia do Sul deixou de ser controlada pelo governo japonês. Com uma ocupação que datava de 1876, a Coreia foi anexada pelo Japão em 1910 em um domínio que teve coreanos como escravos e prostitutas forçadas durante a Guerra do Pacífico (1941 - 1945), e baniu o idioma e até nomes coreanos – as famílias eram obrigadas a registrar seus filhos com nomes japoneses. Foi apenas ao fim da Segunda Guerra que a independência ocorreu. O Japão se desculpou oficialmente, mas quem apanha nunca se esquece, e a relação entre japoneses e coreanos ainda hoje não é das melhores.
O breve e superficial resgate histórico se dá pelo lançamento de “A Criatura de Gyeongseong”, superprodução coreana da Netflix, nesta sexta (22) e se passa no último ano de controle japonês em Gyeongseong, nome dado pelos japoneses para a capital Seul.
Vendida como uma série de terror fantástico, “A Criatura de Gyeongseong” tem um contexto bem mais político do que aparenta. Na primeira parte da série (a segunda estreia em 5 de janeiro) conhecemos Jang Tae-sang (Park Seo-jun), um comerciante coreano abastado de Gyeongseong e conhecido por estar envolvido em tudo o que acontece por lá. Tae-sang liga muito pouco para a política e o movimento revolucionário por independência, pois acredita que o dinheiro lhe dá tudo o que precisa.
As coisas mudam, porém, quando a Guerra se aproxima do fim e os generais japoneses passam a desejar o controle total da cidade, colocando os “josenjings”, como ofensivamente eram chamados os coreanos sob regime japonês, em seu devido lugar de subserviência. Chantageado para encontrar uma pessoa, Tae-sang acaba conhecendo Yun Chae-ok (Han So-hee, da excelente “My Name”), que, ao lado do pai, busca a mãe desaparecida.
O problema é que os japoneses, assim como os alemães, estavam realizando pesquisas genéticas experimentais em busca da arma perfeita… Na primeira cena de “A Criatura de Gyeongseong”, uma sirene toca e uma base japonesa tem que ser evacuada às pressas, pois um dos experimentos teria saído de controle, a tal criatura do título.
É claro que os caminhos de Tae-sang e Chae-ok inevitavelmente se cruzam com o da criatura, dando espaço ao terror da série, mas “A Criatura de Gyeongseong” não tem pressa para chegar a esse ponto. A série usa bem os episódios para construir os personagens e a expectativa para o encontro – gradativamente vamos conhecendo um pouco dos protagonistas, e de alguns coadjuvantes, além de também entendermos a dimensão da ameaça.
A minissérie coreana da Netflix pode ser facilmente compreendida como uma alegoria bem direta da ocupação japonesa na Coreia, dando vida a uma criatura sobre a qual perderam o controle. O texto também lida com o trauma, a perda da identidade de uma nação que hoje utiliza sua poderosa indústria cultural para reconstruir sua identidade aos olhos do mundo, distanciando-a da de seus antigos opressores. Nessa busca por identidade, Tae-sang demora a se reconhecer como coreano, como oprimido, e a lutar ao lado das pessoas que deveriam estar ao seu lado.
É interessante como a série deixa clara essa transformação mesmo para um público ocidental, com uma possível dificuldade de diferenciar japoneses e coreanos (e um idioma do outro). É só quando essa distinção ganha forma, quando entendemos os japoneses retratados como figuras cruéis e caricatas, que a série engrena e ganha um ritmo melhor.
Nos seis episódios dessa primeira parte, “A Criatura de Gyeongseong” tem bons momentos, com boas coreografias de luta, efeitos visuais competentes para criar o monstro e uma reconstrução de época que não é grandiosa, mas funciona razoavelmente bem.
“A Criatura de Gyeongseong”, mesmo focada no suspense com ação, tem uma boa dose de melodrama para os fãs dos doramas da Netflix. A estratégia de ter uma tensão romântica/sexual entre os dois protagonistas tem nesse público um alvo e, mesmo desnecessária à trama, funciona pela química entre Han So-hee e Park Seo-jun.
Mesmo que demore um pouco não para engrenar, mas para entregar seus rumos, “A Criatura de Gyeongseong” é boa o suficiente para manter o interesse durante seus seis episódios. A estratégia de dividir a história em duas partes, ao menos a princípio, parece acertada – é bem capaz que quando a conclusão chegue à plataforma, em 5 de janeiro, o interesse causado pela primeira parte ganhe força a partir do burburinho e dê uma dimensão ainda maior à série.
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Mais uma dica para assistir qdo puder